quinta-feira, 26 de março de 2009

pré-capítulo: Carta para si mesma

Na mesma noite em que soube do trágico destino de Solange, a menina franzina que queria ganhar o mundo, Ester sentiu uma necessidade enorme de desabafar. E decidiu fazê-lo da maneira que fazia melhor: escrevendo.
Como tantas pessoas hoje em dia, ela mantinha um blog. Mas naquele momento, tinha que ser à mão, sentir que sua angústia ficava impressa no papel e a ansiedade dava lugar aos pulsos cansados de tanto como fez tantas vezes desde sua adolescência.
Revirou uma cômoda cheia de papéis, contas a pagar e antigos cadernos que usava como diários e guardava ali como recordação de um tempo em que tinha certeza de que seria escritora. Naquela época se preocupava mais com a aparência das páginas que com o conteúdo em si. E por isso a cada mês, cansava do visual do seu diário e trocava por um que tivesse a ver com seu estado de espírito sempre tão mutante. Encontrou um grosso, encapado com um papel de presente preto cheio de estrelas prateadas e sóis dourados. Tinha poucas páginas escritas e muitas, muitas mesmo, em branco. Era disso que Ester precisava nesse momento.
abriu o caderno que já tinha as laterais das folhas amareladas pelo tempo e viu a data da segunda página - tinha sempre o cuidado de deixar a primeira em branco, para escrever seu nome e alguma frase famosa : 19 de fevereiro de 1992.
Riu dos problemas que tinha há mais de uma década. " Isso foi antes de conhecer Solange, Tomé, Joana" pensou rapidamente e voltou a reparar nas letras. Achou engraçada a forma como escrevia o M, detestou a maneira como assinava seu nome e suspirou baixinho um pouco aliviada: " pelo menos alguma coisa mudou de fato em minha vida. Esse M é a prova de que não sou a mesma, que também evoluí". Achou depois, uma besteira ter pensado naquilo tudo.
Resolveu enfim, escrever:


O que eu quero fazer nesse exato momento é viajar. O que vai ser da minha vida, não faço ideia, mas hoje, tipo agora, quero viajar pelo mundo.
Muita coisa me prende, coisas bobas, coisas não tão bobas, mas a única coisa que realmente deveria valer é a minha vontade e no momento ela não se faz valer. E eu queria viajar.
Não sei dizer se sou ou se estou feliz. Gosto da minha casa, do conforto da minha rotina, de saber que terei grana para pagar as contas e, quem sabe, comprar aquela calça maravilhosa ou aquela bota linda de preço meio exagerado. Mas não sei se isso é o que me faz feliz de verdade.
Um dia, essa minha mudança tem que acontecer. Vivo planejando na minha cabeça quando vai acontecer. Vai ser ano que vem. E os anos vêm e nada acontece.
É como se eu quisesse me fortalecer para virar quem realmente sou. Mas aí caio na real e me lembro que essa força vem de dentro, de mim mesma e já existe.
São tantos aspectos que me engessam: como vou viver, comer, beber, me divertir, comprar as calças maravilhosas e as botas lindas de preço exagerado? O que vou fazer com minhas roupas, sapatos, fotos, livros, computador, arquivos, textos se decidir mudar? Mas, para que mesmo preciso de todas essas coisas se a única coisa que quero é viajar?

Preciso de uma reserva de dinheiro, roupas quentes, sapatos de sola grossa, um plano de voo, uma saída de emergência pro caso de tudo dar errado? De que preciso realmente, além de fazer valer minha vontade, meu passaporte e minha passagem de ida?
E apertar o botão do foda-se resolveria todos os meus problemas? E se não der certo, eu volto? Assim, com uma mão na frente e a outra, onde mesmo? E se der muito certo, não volto nunca mais?
Acho que me perco no meio de tantas questões e acabo perdendo o foco da coisa.
E se o que vale é a experiência, o que é que eu ainda estou fazendo aqui?


Aquela última pergunta ficou martelando na cabeça de Ester: o que é que ainda estou fazendo aqui?
"O que ainda estou fazendo aqui?", repetiu em voz alta aquela pergunta que gritava na sua cabeça.
E foi então que resolveu o que faria. " Vou viajar, mas antes quero encontrar todas as pessoas que passaram por minha vida. Quero zerar minha história com as pessoas do passado pra ficar livre para as pessoas do futuro".
A primeira coisa a fazer era procurar Solange.

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