quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O pecado é relativo

“O pecado é relativo”. Foi o que respondeu ao padre.

O religioso, horrorizado, não sabia o que dizer para a menina de 13 anos, que o olhava com um misto de segurança e serenidade. Eram olhos de alguém mais velho, como se não pertencessem àquele corpinho pequeno e frágil, confessaria mais tarde ao bispo.

O bom filho de Deus, sem palavras para usar no momento, sem coragem de encarar aquele sorriso que fazia questão de existir apenas para deixar constrangido quem ousasse enfrentá-lo, fez o óbvio, o que lhe veio à cabeça, o que lhe pareceu o mais rápido alívio para aquela angustiante e constrangedora situação.

E assim ela foi expulsa da igreja do bairro uma semana antes de sua primeira comunhão, por se recusar a confessar e se arrepender de seus pecados.

Agora, quase 20 anos depois, ainda tinha as mesmas convicções e os mesmos olhos serenos de antes, agora já combinando com sua idade.

“O pecado é relativo”, dizia com um sorriso nos lábios. Era um sorriso desafiador, que escondia muitos argumentos, mas que não fazia questão nenhuma de usá-los. A minha verdade me basta, pensava sempre.

“Como ousa questionar Deus? Que escândalo”, esbravejava o recém convertido primo, quase espumando, num nervosismo que o fazia suar ainda mais, deixando ensopada sua camisa de tecido sintético, totalmente imprópria para a cidade onde viviam.

O escândalo era o seguinte: ela decidiu ingenuamente comentar que em alguns dias iria se mudar para a casa do namorado, e todo mundo sabe que isso é pecado, ora bolas! Tem que casar antes! E então ele, o primo ex-pecador, começou sua tentativa de arrebanhá-la, de mostrar a ela a luz no fim do túnel.

“Não questiono. Deus é inquestionável. Como você ousa acreditar que sabe o que Ele pensa? O que Ele quer pra mim? Isso é entre eu e Deus.”

Falou com uma calma que desconcertou a parentada toda que, ávida por um espetáculo – e os escândalos sempre rendem os melhores espetáculos, já havia largado os refrigerantes e as empadinhas para prestar atenção e estava pronta para gritar aleluia no final do bonito testemunho de seu mais novo membro fervoroso.

O primo não esperava por aquela resposta e isso o fez perder a ordem do discurso. Fazendo cara de quem não entendeu nada, começou a perguntar, mas então porque diabos ela estava ali, diante de todos dizendo tudo aquilo! Que não sentia vontade de casar, que era a favor do aborto, da camisinha, do sexo antes do casamento, do horóscopo, meu Deus, a favor do HORÓSCOPO!

Mas antes de conseguir terminar o questionamento ensaiadinho, ela continuou, interrompendo-o sem o menor pudor: “questionaria a sua crença. Sua religião, sua igreja. Seu pastor, as suas ovelhas, seu rebanho. Tudo isso eu questionaria se essas coisas todas despertassem em mim qualquer tipo de interesse. Mas antes de questionar, eu ignoro tudo isso. Eu realmente cago e ando para tudo isso. Deus deu inteligência ao homem e pecado mesmo é não usá-la. Viver seguindo regras escritas por pessoas comuns, com defeitos comuns, vontades e desejos comuns, isso talvez seja pecado.”

Era previsível o que viria agora. Ele usaria seu arsenal de respostas prontas. Falaria sobre a Bíblia, sobre os apóstolos, sobre a igreja, sobre o livre arbítrio, sobre o céu e o inferno. Sobre a ira de Deus.

Mas ela era inabalável. Não queria mudar a cabeça de ninguém, queria apenas o direito de não ter que mudar a sua. E não mudaria até que quisesse.

A discussão iria longe. Começava a se arrepender do terrível pecado de ter ido ao aniversário do tio. A família toda - menos o pobre aniversariante- aparentemente cansada de fazer besteiras, havia se arrependido e se convertido a uma religião evangélica, dessas que te ensina, mas veja bem, não te obrigamos, a ter uma vida livre de pecados.

Olhava para a cara porca do primo, pensando que era muita hipocrisia falar tudo aquilo depois de ter feito tudo que ela sabia que ele tinha feito. Hipócrita. Era só nisso que pensava agora. Nisso e no fato de que era realmente muito nojento usar aquele tipo de roupa naquele calor infernal. Calor infernal. Riu de mais essa ironia do destino.

A conversa descambou para o desinteresse total e ela já não estava mais prestando atenção no que ele berrava.

Começou a imaginar cenas do primo usando a mesma camisa sintética em várias situações. O viu na praia, de sunga e camisa, no banho, de camisa e touca, jogando futebol – caso não fosse pecado- de chuteiras e camisa. E quando finalmente veio a imagem do primo fodendo a namorada crente de camisa e, claro, sem camisinha, não se aguentou e soltou uma forte gargalhada.

Todos se espantaram e se entreolharam assustadíssimos. Só podia estar possuída, a coitada. E fizeram o óbvio, o que lhes veio à cabeça, o que lhes pareceu o mais rápido alívio para aquela angustiante e constrangedora situação.

E assim foi expulsa da igreja do primo também. Uma semana antes da sua mudança para a casa do namorado.



P.S.: Os personagens citados são fictícios, pero no mucho, visto que o mundo está cheio de primas, primos e de pecados, relativos ou não. Mas de qualquer forma, qualquer semelhança é problema seu.